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O DEDAL DAS ARMADURAS DO TEMPO

Netos pequenos gostam de mexer em tudo. Duas alegrias: quando chegam em casa e quando vão embora. Desde cedo aprendi a esconder deles: objetos caros, raros, pontudos e perigosos. Guardo no armário minha coleção de selos, minhas canetas de coleção, meus radinhos de pilha e desligo o computador de trabalho. Já tive um livro - quase pronto – deletado da área de trabalho e a experiência foi amarga. Sorte que o arquivo foi para a lixeira e eu consegui resgatá-lo inteiro. Quando criança adorava mexer nas gavetas e nos armários da casa da minha avó paterna Sarah. Vovó que caixinha é essa? Perguntei. Uma caixa de costura. Respondeu. Abri de pronto e senti que ela parou de respirar de vez. Cuidado: tem agulhas! Esqueci as agulhas, os carretéis de linhas, a tesoura, a fita métrica, os botões coloridos e fui direto pegar um copinho de aço cheio de furinhos. O que é isso vovó? Perguntei. Um dedal, respondeu. Serve para proteger os dedos durante a costura. Vovó Sarah enfiou o dedo maior da mão direita no copinho de aço e mostrou pra que serve. Um escudo para o dedo! Disse. Imaginei, então, um dedal gigante e eu dentro dele. Um dedal-armadura. Catei o dedal da caixa de costura e sumi com ele. Vovó viu quando eu peguei o dedal e me escondi no alto do pé da goiabeira. Lá fiquei. Alguns dias depois vovó Sarah cobrou-me a peça: João, cadê o dedal? Guardado, respondi. Posso saber o que você vai fazer com ele? Quis saber. Um dedal-armadura para me protegido das flechas, das lanças e das espadas dos inimigos do reino. Vovó Sarah riu. Nunca devolvi...
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XEQUE-MATE E O TERRITÓRIO DAS 64 CASAS / JOÃO SCORTECCI

Xadrez. Já joguei. Gostava. Depois, por alguma razão, desisti. Perdi o fiel amigo do jogo e, depois, também o parceiro inimigo do jogo. Eu era o perdedor, sempre. Isso – talvez – explique a razão de terem desistido do meu perfil singular. Aceitava a derrota, passivamente. Não roubava no raciocínio e poeticamente: adorava sacrificar o meu Rei, em sinal de desistência. Rei morto, rei posto! Uma vez – no Ceará dos anos 1970 – participei de um desafio de xadrez, no Clube Náutico. Um mestre enxadrista, jovem e estranho, jogava contra ao mesmo tempo contra um bando de alunos. O mestre, miúdo e de óculos fundo de garrafa, perdeu apenas um jogo. Ganhou o resto, de lavada. Vi o seu Rei resfolegar e cair, mortalmente, no tabuleiro. Xeque-mate! Palmas. Pediu revanche. Aceitamos! Em segundos, o mestre amassou o Rei do aluno sortudo, que rolou, mortalmente, no piso do salão. Gritos! Depois, pegou um peão do tabuleiro e o deu, de presente, para o herói do dia. Inesquecível. Peões, bispos, torres e cavalos – na arte da guerra – “sacrificam-se”, lutando, pelo reino de 64 casas. Andei lendo – até então não sabia – qual a diferença entre “Guerra absoluta” – aniquilamento total do inimigo – e “Guerra total” – mobilização global. Singela diferença. Tentei, então, resgatar do passado o contato com "o fiel amigo do jogo". Não o encontrei. Escafedeu-se. Depois tentei localizar "o parceiro inimigo do jogo". Sem sucesso. Encontrei foi o seu neto, Lucas, nas redes sociais. Surpresa! Disse-me, assim que falei o meu nome: "Vovô morreu em 2022, da Covid-19"....
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MULHERES NO FUTEBOL E RITINHA PAVONE / JOÃO SCORTECCI

Ritinha, irmã caçula de Lúcio, gostava de jogar bola com os meninos da rua. Isso no Ceará dos anos 1960. Lembro que cortou os cabelos curtos, a La Rita Pavone, cantora italiana de sucesso na época. Magrela e sapeca. Veloz. Chutava a bola Pelé com precisão e força. Começou na torcida, trepada no muro do vizinho. Depois na defesa, completando número, no meio rebatendo a bola e por fim, na frente, fazendo gol. A mãe de Ritinha não gostava da história. No início proibiu: Futebol não é esporte para mulher! Algo assim. Depois, com o tempo, conformada, liberou geral. Virou fã de carteirinha e não perdia um jogo. Jogávamos descalços. As vezes até no meio dos carros. Um time com camisa – o da Ritinha Pavone, sempre - e o outro, sem camisa. Ritinha Pavone colecionava marcas nas canelas e as mostrava com gosto. Cada cicatriz tinha uma história. Quando perdia o tampão do pé - chutando o chão - enrolava as carnes frescas com esparadrapo. Lendo sobre a história do futebol feminino no Brasil descobri que no período entre 1941 a 1979 era proibido. Desconfiava. A estupidez coube a Getúlio Vargas (decreto-lei 3.199/41), durante a Ditadura do Estado Novo. A ditadura acabou e a proibição ficou, no silêncio do tempo. Esqueceram de revogar? Talvez. No decreto 3199/41, a estúpida justificativa: “Esporte incompatíveis com as condições de sua natureza.” E mais, no texto: halterofilismo, beisebol e as lutas! Aqui comigo mesmo: tudo que hoje faz muito sucesso! No discurso oficial a justificativa de que esses esportes poderiam afetar as funções orgânicas,...
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JACK LONDON, O BRASILEIRO / JOÃO SCORTECCI

Não me lembro do ano exato. Talvez 1996. Alguém da Livraria Cultura me ligou e disse: “O Jack London da Booknet vai falar sobre e-commerce de livros”. Algo assim. “Jack London: o autor do livro ‘O Lobo do Mar’?  Impossível! O moço morreu em 1916!” “Não! O Jack London brasileiro. O criador da Booknet – depois Submarino, 1999 -, considerada a primeira loja online de livros do Brasil.” Então fui. Auditório lotado, muita gente importante do negócio do livro. Em maio de 1996, na Folha Ilustrada, a jornalista Cristina Grillo, escreveu: “A Booknet põe 12 mil títulos à venda na rede, expectativa é que o acervo chegue a 40 mil em 90 dias. Por meio da Internet, será possível comprar e receber em casa livros de 35 editoras brasileiras e de outras nove livrarias virtuais nos Estados Unidos e na Europa.”. Perguntaram: “Você é parente do escritor norte-americano?”. “Não. Foi um gracejo da minha mãe que tinha ‘London’ no sobrenome e gostava muito do autor”. Risos. Declarou, então: “Foi após uma visita à Amazon, em 1994, que decidi criar a Booknet”. “Amazon?” “Sim. Empresa de tecnologia norte-americana de e-commerce, computação em nuvem, streaming e inteligência artificial, fundada por Jeff Bezos, em 5 de julho de 1994.” O José Henrique Grossi, amigo e na época vice-presidente da CBL, fuxicou no pé do meu ouvido: “Logo a Amazon vai vir com tudo e engolir deus e o mundo!” Profetizou. E, então, soltou sua frase predileta, conhecida por todos: “Merdas cagadas não voltam mais ao cu!”. Risos. Pela Scortecci Editora, trabalhei alguns anos com...
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ELISA GUIMARÃES E A CORUJA-BURAQUEIRA / JOÃO SCORTECCI

A mineira de São Sebastião do Rio Verde, Professora Elisa Guimarães, colecionava corujas. Tinha centenas delas, espalhadas pelo seu pequeno apartamento na Rua General Jardim, no bairro de de Higienópolis. Anos depois mudou-se para a Rua D. Veridiana, também em Higienópolis. Lembro que durante alguns anos andei colaborando comprando corujas para a sua coleção. Conhecemo-nos nos anos 1990, na casa do escritor e crítico literário Fábio Lucas. Elisa era Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (1981), onde ministrou cursos de pós-graduação e orientou mestrandos e doutorandos na área de Letras. Foi professora titular na área de Letras nos cursos de pós-graduação da Universidade Mackenzie. Publicou 12 livros. 9 deles pela Scortecci Editora. 8 de Memórias de Viagens: Itália, Suíça, França, Argentina, Cuba, Canadá, Açores, Israel, Turquia, Santiago de Compostela, Évora, Valêmcoa, Pamplona, México, Estados Unidos, Itália, Portugal, Espanha, França, Roma e Terra Santa. E, na minha opinião, o que ela mais gostava: "Irmã Leticia: Memória de uma Carmelita Exemplar" (Scortecci, 2019), com várias edições. Professora Elisa Guimarães faleceu em 6 de dezembro de 2024, um ano depois do nosso último encontro, no lançamento do meu livro de crônicas Menino Tipográfico e outras histórias, volume I, no Espaço Scortecci. Quando criança – isso no Ceará dos anos 1960 – uma coruja-buraqueira amanheceu na boca da cadela Wanderléia, pequinês da casa, batizada com o nome da famosa cantora da jovem guarda. Tomei um susto. Wanderléia abriu a boca e...
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DAS ALAVANCAS DE BADEN-POWELL E O ESCOTEIRO KIM / JOÃO SCORTECCI

Lembro-me – ainda menino de tudo – da epopeia que foi, com um bastão de escoteiro, improvisar uma alavanca e mover do chão seco do Rio Jaguaribe, no sertão do Ceará, uma grande pedra. Missão dada, missão cumprida! A cena - trabalho em equipe - ficou no coração e na memória. Fui lobinho e escoteiro. Meus irmãos Luiz e José: escoteiros, monitores e chefes. Meu pai Luiz, Comissário Regional do Ceará. Lembro-me do Jornalzinho KIM, personagem criada pelo irmão José, travestido de escoteiro, para ilustrar o informativo do Movimento dos Escoteiros do Ceará, impresso num mimeógrafo. Meu trabalho no jornalzinho era grampeá-lo! 4 folhas de sulfite, dobradas ao meio, sem refile. Folhas soltas, desde aquela época, já me incomodavam e muito. Provavelmente um pequeno “toque” de gráfico, algo assim. O Escotismo foi fundado em 1907, pelo tenente-general do Exército Britânico, Baden-Powell (Robert Stephenson Smyth Baden-Powell, 1857 - 1941). No dia 23 de abril comemora-se o Dia Mundial do Escoteiro. A data foi escolhida em 1910, pelo próprio Baden-Powell, por ser o Dia de São Jorge, Patrono do Escotismo. Fui lobinho da Matilha Amarela – das aquelás Ana Maria Macedo e Gláucia Bomfim Alencar – e escoteiro da Patrulha Leão, do saudoso e sempre alerta Chefe Mourão (Antonio Mourão Cavalcante, 1948 - 2022). Meus irmãos Luiz Gonzaga e José Henrique estiveram no 1º Jamboree Pan-Americano, em 1965, na Ilha do Fundão, no Rio de Janeiro. Quanto à pedra grande - aquela do leito do Rio Jaguaribe -, ainda, provavelmente, vive por lá. Equilibrada e única....
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LARGO DA PÓLVORA: EXECUÇÕES PÚBLICAS E O ESPÍRITO DA DOR / JOÃO SCORTECCI

No Largo da Pólvora, no centro da cidade de São Paulo, no distrito da Liberdade, no século XVIII, existia um armazém de “explosivos” e era palco para execuções públicas. Em 1832, a Prefeitura de São Paulo mandou demolir o armazém, mas o nome ficou. No lugar, foi construído o edifício Jahu, um jardim ao estilo oriental, erguido no início do século passado, quando da imigração japonesa, três pequenos lagos, com peixes ornamentais e os bustos de “Ryu Mizuno”, pai da Imigração Japonesa no Brasil e de “Umpei Hirano”, fundador do primeiro núcleo Japonês no Brasil, a “Colônia Hirano”, de 1915, localizada na cidade de Cafelândia, interior de São Paulo. Visitei o Largo da Pólvora, pela primeira vez, no ano de 1977, quando então funcionário da empresa japonês, a F.K. Equipamentos para Escritório, meu primeiro e único emprego, antes de fundar a Scortecci Editora, no ano de 1982. Lembro-me que, na época, fiquei encantado com a beleza do lugar, com as carpas, os lagos limpos e, o clima exótico e oriental do espaço. Revisitei o “Largo da Pólvora” em 2020, dentro de um pedal de bike, no auge da pandemia da Covid-19, e pude observar, com tristeza, sinais de abandono. Voltei lá, mais uma vez, no início do ano de 2022, em outro pedal de bike, e a decepção foi ainda maior. Abandono total, muita sujeira, bancos pichados, carpas mortas, boiando nos lagos do distante oriente. Ali mesmo, no coração do tempo, visualizei o espírito da pólvora, o armazém de explosivos, o paredão da morte e o palco cruel das execuções públicas. Estavam lá. Vivos! Sombras,...
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DEVE SER ASSIM / JOÃO SCORTECCI

Das necessidades: físicas e espirituais. Pergunta: Quem precisa de mim? A carta veio de longe, pacote embrulhado com barbante de pão, bilhete no prego da praça matriz, aviso no feltro verde da escola, cartaz no lambe-lambe no poste sujo, batom barato no espelho do bar, poema rabiscado no guardanapo do beijo, linhas nuas do avião de papel, barquinho náufrago na banheira alheia, diário com garranchos e penas úmidas, perfil dos cansados da noite, encontro volátil de desejo, tesoura cega de pontas tortas e laço com pensamentos de curvas azedas, além do tempo... Tudo junto, no olhar da vida. No infinito do instante. Veloz e passageiro. Pergunta: Quem precisa de mim? Foto no álbum das dores, liberdade de pássaro dolorido, sombra na rua escura em movimento, silêncio desordenado de vozes e vento, desencontro no espaço, natureza frágil, corpo tatuado, relógio das horas partidas e morte. Pergunta: Quem precisa de mim? Eu, talvez. A carta veio de longe. Veio e ficou: no infinito do instante., além do tempo.João Scorte...
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ALEXIA, A MENINA DOS OLHOS / JOÃO SCORTECCI

Eu sou mesmo uma lesma. Ando sobre o abdômen e gosto de coçar o umbigo. Alexia fez contato no ano passado. No mês de setembro. Escreveu: Quem é você? Apenas isso. Não quis bloquear, de pronto. Pensei, na época: pode ser uma autora procurando informações sobre publicação de livro, algo assim. Escrevi: Bom dia. Diga! Silêncio. Alguns dias depois outra pergunta: você é editor de livros? Sim. Respondi. O nosso monólogo continuou igual: vazio e pobre. Em novembro ela escreveu, finalmente: Meu nome é Alexia. Insisti, então: Diga! E assim ficou: silêncio cruel. Mostrei o papo cabeça para um amigo hacker, que no passado, foi um soldado do crimes cibernéticos. Depois, do nada, encontrou um amor, uma Juíza Criminal, alguns anos mais velha que ele e, então, entrou na linha. Ajustou-se! Hoje ele trabalha para um escritório de detetives investigando fraudes, golpes e adultérios. A sua história virou livro e no lançamento – num barzinho da Zona Leste de São Paulo - lotou de ciberpiratas. Confesso: foi divertido. Conheci no lançamento o “B” e também a “Flor”, dupla de hackers da pesada. Famosos. Pedi uma foto com eles: "No flash!" Meu amigo hacker olhou as mensagens de Alexia e me disse, de pronto: Parece zoada de robô! Deleta! Fiquei triste. Até então Alexia era prioridade na ordem do dia. Lendo sobre robôs na Internet fiquei sabendo que eles fazem de tudo: comentam posts nas redes sociais, atendem clientes, desafiam adversários em jogos online. A atividade deles é tão intensa que chega a dominar mais da metade do fluxo da internet. Seu comportamento...
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O SENTIDO DA VIDA É A PROPRIA VIDA / JOÃO SCORTECCI

Não conheci pessoalmente o escritor e psicanalista italiano, nascido em Milão, radicado no Brasil, Contardo Calligaris (Contardo Luigi Calligaris, 1948 - 2021). Vez por outra lia sua coluna na FOLHA e nelas encontrava - sempre - assuntos interessantes e pertinentes. Anotava. Hoje, 30 de março de 2025, data de 4 anos de sua morte, aos 72 anos de idade. Nas minhas anotações encontrei nota do seu entendimento sobre o sentido da vida. Segue: "O sentido da vida é a própria vida. Isso pode parecer uma total trivialidade - mas, para a maioria das pessoas, é um escândalo. Mas pouquíssimas pessoas conseguem viver pensando que o sentido da vida está na vida e, vou dizer mais, é a própria vida". No romance “O conto do amor” (Companhia das Letras, 2008), Contardo Calligaris, conta a história da visita de Carlo Antonini, psicoterapeuta italiano que vive em Nova York, ao convento de Monte Oliveto Maggiore, fundada em 1313 por São Bernardo Tolomei (1272 - 1348), na Toscana. Ali, Carlo Antonini, depara com algo inusitado: a figura do jovem São Bento, pintada em um dos afrescos da abadia, é parecida com seu pai, que havia morrido doze anos antes. Isso o remete ao próprio motivo de sua ida à Itália: uma estranha conversa que ambos tiveram pouco antes de o pai morrer, quando este revelou ao filho, em tom de confissão, que em outra vida teria sido ajudante do pintor maneirista Sodoma (Giovanni Antonio Bazzi, 1477 - 1549), justamente o autor daquelas imagens. Incrível. Quando adolescente, ainda morando em Fortaleza, minha mãe Nilce, médium, procurou-me...
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FLORINDA BOLKAN E O CACO DE VIDRO NO PÉ / JOÃO SCORTECCI

O Eu menino era danado. Danadíssimo. Mamãe Nilce – merecidamente – adorava puxar e torcer as minhas orelhas, com força. Puxava com propriedade e gosto. Aos 11 anos de idade, talvez 12, eu andava espiando, pelo buraco do muro do quintal, o corpo nu da menina moça, que, todo final de tarde, banhava-se com cabaça e água fresca, trepada na tampa do poço da casa vizinha. Puxava água com a bomba de braço e banhava-se de amor. Magrela, olhos negros, da cor de jabuticaba, parecia, sempre, estar no cio. Cabelos curtos, à la “Rita Pavone”. Quando andava, empinava a bunda vazia de carne, além da conta. Sabia que estava sendo olhada pelo buraco do muro, mas parecia não se importar com a tara do olheiro intruso. Sonhava ser atriz, morar no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro e ser, um dia, mais famosa que a atriz cearense Florinda Bolkan. Florinda morou em Fortaleza e depois no Rio de Janeiro, antes de se mudar para a Itália, em 1968, e fazer carreira de sucesso no cinema. O que se sabe é que andou ali pelo bairro, no início dos anos 1960. O buraco do muro era miúdo, e nele, cabia um olho por vez. Com o tempo a menina moça improvisou cantoria, dança sensual e até rebolado. Numa tarde de calor dos infernos, com o dedo apontando para o buraco quente - finalmente – chamou-me para a briga. E eu fui. Subi no muro de pronto, com a ajuda de um tambor velho de querosene. Pulei e caí - em cheio - num campo minado, apinhado de cacos de vidro. Um caco afiado, pontudo, entrou no calcanhar do meu pé direito. Gritei de dor. Sangue. Rita Pavone, de...
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AUGUSTO DE CAMPOS E A INFOXICAÇÃO EM TEMPOS DE IA / JOÃO SCORTECCI

Um dia de cada vez. Lendo sobre o uso e aplicação de ferramentas de Inteligência Artificial na literatura, encontrei algo do outro mundo – literalmente. Já chegamos lá? Talvez. Estava trabalhando numa apresentação para a Abigraf – Associação Brasileira da Indústria Gráfica, intitulada “O produto livro – Das responsabilidades da Indústria Gráfica”, quando dei de cara com um artigo do outro mundo, em que se dizia que um centro espírita estava usando IA, para se comunicar com pessoas que já haviam morrido. Conversas do além, algo assim. Gosto do assunto – muito – o que me obrigou a ler o artigo inteiro. Faz parte. Aqui com as almas penadas da literatura: já imaginaram incorporar uma identidade IA? Receber um mix de escritores malditos, concretistas, modernistas e parnasianos? Doideira! Verdadeira infoxicação literária. Descobri, ainda, que a palavra "infoxicação” é a junção das palavras "informação" e "intoxicação", conceito concebido pelo físico espanhol Alfons Cornellade, para designar a situação em que uma pessoa tenta receber e analisar um número de informações muito maior do que seu organismo é capaz de processar. Dizem – não sei se é verdade – que um ser humano tem a capacidade máxima de ler 350 páginas por dia, caso faça apenas isso o dia inteiro! Desconfio. Já o volume de informações que recebemos diariamente pela Internet é de cerca de 7.355 gigas, o equivalente a bilhões de livros! Lendo sobre os 94 anos do incrível escritor Augusto de Campos e o lançamento do seu livro “Pós Poemas”, algo me chamou atenção – além da conta...
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MIÚDOS DE FRANGO, FARINHA DE MANDIOCA E OVOS / JOÃO SCORTECCI

Menino de tudo, isso no Ceará dos anos 1960, comia ovo frito, farinha de mandioca e pão. Isso e mais nada. Mamãe Nilce, desesperada, tentava de tudo. Sem sucesso. Dizia sempre: Você precisa comer peixe, verdura, frutas! Não adiantava. Não descia. Macarrão, vez ou outra, com molho branco e queijo ralado. Adorava bolo de assadeira com cobertura de chocolate e pudim de leite. Feijão, arroz, carne: nem pensar! Odiava bife à rolê, panqueca de carne moída e torta de legumes, especialidades da minha mãe. Foi na casa de um amigo de rua que provei miúdos de galinha cozido: coração, fígado e moela! Adorei. Mãe faz miúdo! Ela fez. Comi tudo, com farinha. Foi assim no melhor da minha infância. Fui criado na base de ovo, farinha de mandioca e miúdos! Lembro do dia que a casa caiu e eu quase morri de tristeza e desgosto. Dia dos infernos! Um crápula me disse: sabia que ovo faz mal? Dá aterosclerose, gordura nas artérias do coração, infarto, AVC e morte súbita. Insistiu. Verdade? Sim. Naquele dia comi apenas um ovo e farinha. Diziam, na época, que farinha absorvia a gordura. Nunca procurei saber. Naquele ano ruim de tudo o meu avô paterno Batista, o Batista da Light, morreu. Eu o amava. Morreu demente, tinha aterosclerose e a cabeça nas nuvens. Adorava toucinho, feijão e farinha. Sofri muito. Isso no seu prato é coração de galinha? Sim. O prato estava cheio. O crápula – o mesmo que disse que ovo entupia as artérias do coração - contou aos céus: 33 corações! No seu prato estão 33 galinhas mortas. Sabia? Sim, respondi. Na verdade nunca, até...
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OUTONO NA JANELA / JOÃO SCORTECCI

Das alucinações da manhã. Dos delírios de outono. Lugar real em lugar algum. Febril e suas reservas. Minha alma escreve. Lá fora uma multidão de ausentes. Silêncio temporal. No canteiro de cunhas, cravado no chão do concreto, uma flor de asfalto. Quase jardim. Resiste. Observo-a: logo existe! Sólida natureza. Até quando? Desconfio. Na esquizofrenia da janela um passarinho se agita no vidro. Liberta-te! Liberta-te! Ainda que tardia! Asas de fuga, papo amarelo, cabeça veloz, no norte de todas as direções. Gosto deles. São inquietos e leves. Quer voar, ir embora, voar. Algo - o quê? – o guarda perto da razão. Rupturas? Talvez. Alucinações no silêncio mágico do desejo matinal. Outono de delírios. Dono de si – o pássaro - abraça o real e um lugar de calmaria na janela. Ele me ocupa. Ocupa toda a rua, ainda deserta. Nós: estado febril, de cunhas e miragens. Alucinações da hora. E a vida - como ela é - segue o seu caminho no outono da janela. Logo existe! João Scorte...
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AZUL É A COR DA POESIA E DA FLOR DOS POETAS / JOÃO SCORTECCI

O poeta, místico e filósofo alemão Novalis (Georg Philipp Friedrich von Hardenberg, 1772-1801) é um dos mais importantes representantes do primeiro romantismo alemão do final do século XVIII. Por meio de sua inacabada história de amadurecimento, intitulada “Heinrich von Ofterdingen” (1802), Novalis criou um dos símbolos mais duráveis do movimento romântico: a flor azul. Blaue Blume significa desejo, amor e a luta metafísica pelo Infinito, simbolizando o anseio pela busca de um ideal inalcançável e de uma unidade perdida, e, ainda, a esperança pela reunião num paraíso celeste e a revelação misteriosa da beleza das coisas, que desafia o racionalismo e é comunicada na arte. Gosto desbragadamente do alemão Novalis! Além de ser um símbolo da nostalgia romântica, a flor azul é associada ao místico, ao ato de conquistar algo impossível, ao que é inatingível. E pode também ser associada aos momentos de luto e morte. Percebi Lobélia ainda menina-moça. Uma herbácea pálida e triste. Nativa da África do Sul, da família Campanulaceae, que imigrou para o Brasil no início do ano de 1972. Lobélia gostava de escrever poesia e carregava nos olhos de moça, um azul roxo de pétalas. Praticava - no cenário urbano – desconfianças e versos inacabados. Coisas de poeta! Carregava no corpo – inadvertidamente – papel, caneta e perfume da noite. Escrevia e vigiava o silêncio do Largo da igreja de Santa Cecília, em São Paulo. Escolhia suas próprias sombras e despertava – quando desejava – paixões alheias. Foi, na época, o meu melhor amor. Sobrevivia cunhada...
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DALTON O CROMOSSOMO X / JOÃO SCORTECCI

O químico e físico John Dalton (1766 - 1844) nasceu em Eaglesfield, uma pequena cidade na Escócia. Não o conhecia – confesso – e nunca tinha ouvido falar sobre sua pessoa, inventos e descobertas. Cheguei até John Dalton lendo sobre “discromatopsia”, defeito na visão de algumas cores e incapacidade de percebê-las, no todo ou em parte. É o meu caso, com as cores: azul, cinza, verde, roxo e marrom. Acordo zoado! Essas cores desaparecem: somem da minha razão! A doideira costuma durar de três a quatro horas. Acontece também – mais raramente – no final do dia, na hora do pôr do sol, quando tudo fica um imenso painel acinzentado. Impossível dirigir, ler e escrever. A ciência diz que é defeito no cromossomo X, responsável pela guarda das razões hereditárias e das mutações da natureza. Das 3.200 doenças hereditárias identificadas até hoje, 307 podem ser atribuídas à ocorrência de mutações ou falhas no cromossomo X, as quais interrompem a produção de algumas proteínas essenciais para o bom funcionamento do organismo. Passei alguns vexames quando criança – sapatos, roupas, meias, pinturas, plantas e frutas – e só descobri que existia algo de errado, no ano de 1976, quando no serviço militar obrigatório. A cor verde-oliva dos uniformes militares parecia cáqui, igual à do uniforme dos escoteiros. Mesmo assim, tornei-me motorista e servi no BG - 2º Batalhão de Guardas, Parque D. Pedro II e no QG do II Exército, no Ibirapuera. É engraçado o fenômeno do reencontro com as cores da luz: “alguém” liga o botão no meu cérebro, e eu – do nada – começo...
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LANCES DORIDOS DO POETA LUIS GAMA / JOÃO SCORTECCI

Em carta do ano de 1880, intitulada “Lances doridos”, do poeta e jornalista Luis Gama (Luís Gonzaga Pinto da Gama, 1830 - 1882), patrono da Abolição da Escravidão do Brasil,  enviada para o advogado, jornalista, magistrado e escritor Lúcio de Mendonça (1854 - 1909), um dos idealizadores da Academia Brasileira de Letras, sobre sua mãe Luísa Mahin, ex-escrava de origem africana, radicada no Brasil, que teria tomado parte na articulação dos levantes de escravos que sacudiram a Província da Bahia, nas primeiras décadas do século XIX: “Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação) de nome Luísa Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, insofrida e vingativa. Dava-se ao comércio: era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito. Era dotada de atividade. Em 1837, depois da Revolução do dr. Sabino, na Bahia, veio ela ao Rio de Janeiro e nunca mais voltou. Procurei-a em 1847, em 1856 e em 1861, na Corte, sem que a pudesse encontrar. Em 1862, soube, por uns pretos minas que  conheciam-na e que deram-me sinais certos, que ela, acompanhada de malungos desordeiros, em uma “casa de dar fortuna”, em 1838, fora posta em prisão; e que tanto ela como os seus companheiros desapareceram. Era opinião dos meus informantes que...
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DAS FACETAS DA DEUSA JUNO / JOÃO SCORTECCI

Das facetas da deusa Juno. As “caras” guardo no cofre do porquinho. As “coroas” eu deixo circular, livremente. Sempre foi assim. Aprendi o jogo da sorte com os ensinamentos do epíteto do Moneta, a avisadora. Na minha coleção de moedas antigas tenho raridades cunhadas no cume do Monte Capitolino. Isso na Roma antiga. Foi nessa época que conheci a deusa Juno. A “cara” que ela me deu de presente guardo até hoje. Cara é Cara, disse ela. Prefira - sempre - as faces e os perfis, explicou. Elas são transparentes e sinceras. São caras e únicas. Talismãs! Esqueça as “coroas” e seus Reis de pedra. São mentirosos, cruéis e falsos. E dão azar! Mesmo achando Juno uma doida de cobre e níquel sempre fiz a minha parte no trato. Quando o cofre do porquinho enche de “caras” trato de esvaziá-lo pagando o almoço do dia. Uma vez sobrou de troco R$ 3,20. A moça do caixa devolveu tudo em “coroas”. Isso não se faz, protestei. A deusa Juno deve ter ficado triste. Acontece. Em respeito ao epíteto nunca mais voltei naquela casa. Rigidez monetária! Não sou supersticioso. Só não gosto de brincar com a sorte. João Scorte...
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PROVA DE HUMANIDADE REPLICANTE / JOÃO SCORTECCI

Prova de vida eu sei o que é. Sou aposentado e uma vez por ano, no mês de agosto, vou até uma agencia do banco do Brasil, onde tenho conta e faço a comprovação de vida mostrando documento com foto e olhando amorosamente nos olhos do servidor atendente. Constrangedor, sempre. Sei das fraudes. E também da importância. Hoje lendo sobre “Avanço da inteligência artificial exige forma de verificação humana anônima e segura” descobri que logo vamos precisar também de “Prova de humanidade”. E que até já existe um APP que cuida do assunto. Assustador! O tal protocolo visa criar infraestrutura que permite diferenciar humanos de robôs em interações e operações digitais. Sabemos – não é novidade pra ninguém – que robôs comentam posts nas redes sociais, atendem clientes desavisados, desafiam adversários em jogos online e até respondem cartas de amor em blogs de relacionamentos. Tem de tudo. A atividade deles é intensa que chega a dominar mais da metade do fluxo da internet. O cenário é devastador. O tal APP atesta por meio da biometria da íris, prova de humanidade: segura, anônima e privada, que você é um ser humano único. Sem cópias ou fraudes. Aqui com os meus neurais: Operei de catarata, dos dois olhos, perdi as minhas íris? Dr. Google diz que não. Na cabeça imagens do filme Blade Runner - O Caçador de Androides (1982), trama de ficção científica que acontece no século 21 - já estamos nele - onde uma corporação desenvolve clones humanos - identificados como Replicantes - para serem usados como escravos em colônias fora da Terra. Um grupo...
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SOBRE RADICAIS LIVRES, MORFEMAS E MAÇÃS / JOÃO SCORTECCI

A palavra “matar” anda solta nos noticiários. Está em tudo que é lugar. Até nos pensamentos e ideias de paz. Estava lendo sobre ismos - sufixo que exprime a ideia de fenômeno linguístico - para um livro que estou - tentando - escrevendo e acabei chegando aos morfemas - menor parte, dotada de significado, que constitui uma palavra - também conhecido como radical, que é o núcleo que abriga a significação externa da palavra. Complicado, né? Também acho. Perdi tempo nos sufixos verbais. Ma (mal) + a(r) de afastamento? Afastar o mal? Talvez. Cadê o meu amigo Pasquale? Naquele dia de festa ficamos juntos na foto, no papo furado e acabei esquecendo de perguntar-lhe sobre os "ismos", os "fonemas" e os "radicais livres". Acontece. A história de hoje sobre "matar" me fez lembrar de um texto que escrevi no início dos anos 1980 para a empresa japonesa Yakult, sobre maçãs. Má - que se opõe ao que é bom; ruim + sã - saudável, bom. No final do texto, uma mensagem de impacto: "Tudo depende das nossas escolhas!" Algo assim. Texto impresso num cartão e colado na tampa da caixa de maçãs. O bom do serviço não era o dinheiro extra, que pingava todo ano. O gostoso era receber, de presente, uma caixa com doze maçãs, tipo exportação. Maravilhosas. Era matar ali mesmo, de felicidade, gula e salivação. Hoje - não sei a razão - não gosto mais de maçãs. Dualidades? Talvez. As maçãs fazem parte de um passado de sufixos verbais, radicais livres e morfemas. Sobre o livro que estou - estava - escrevendo, continua parado de vez. João Scortecci &n...
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